segunda-feira, junho 11, 2007

Cadernos da ELT nº 0 - Núcleo de Processo Colaborativo

Dando continuidade à publicação dos textos do Cadernos da ELT nº 0, postamos agora um texto de Alessandro Toller, dramaturgo do trabalho que vem sendo recentemente apresentado pelo núcleo de artes Circenses da ELT , a Paixão do Circo. Na época, Alessandro era aprendiz do núcleo de dramaturgia e participante do projeto do Núcleo de Processo Colaborativo, que deu origem ao ano seguinte o espetáculo Crime e Castigo, que, além de temporada na ELT, também teve este trabalho apresentado No Centro Cultural São Paulo.


Boa leitura a todos, convido a comentarem aqui as impressões sobre.

_________________________________________________


Memórias do Subsolo do Conchita
Alessandro Toller*



Alessandro Toller (à esquerda) em cena de Crime e Castigo.
Núcleo de Processo Colaborativo
Foto: Beto Garavello



“Eu precisava saber de outra coisa, outra coisa me impelia: naquela ocasião eu precisava saber, e saber o quanto antes: eu sou um piolho como todos, ou sou um homem? Eu posso ultrapassar o limite ou não! Eu ouso inclinar-me e tomar o poder ou não! Sou uma Bestya trêmula ou tenho o direito de matar...”

A dúvida hedionda que acomete Raskólnikov, personagem central de CRIME E CASTIGO, talvez tenha sido a fagu­lha incendiária que levou os coordena­dores dos núcleos de direção e dramaturgia da ELT a propor o trabalho realizado ao longo do ano passado. Aliada, creio eu, ao desafio de lidar tea­tralmente com um clássico da literatura de quase 600 páginas.

Escrito em 1866 pelo russo Fiodor M. Dostoiévski (1821-1881), o romance foi posto à mesa para um gru­po de 12 diretores, coordenados por Antônio Araújo, 12 dramaturgos, por Luis Alberto de Abreu e algumas dezenas de atores sob a orientação de Lucienne Guedes, convidada a participar do projeto de forma a assegurar a assegurar na mesma medida o trinônio fundamental para o desenvolvimento de um trabalho colaborativo.

Do Prefácio ao Epílogo

Logo ao primeiro encontro defi­niu-se a etapa inicial de nossa obra-de-­fôlego: faríamos em conjunto a varre­dura analítica do catatau, capítulo por capítulo. As partes se uniram - através de sorteio - e criaram-se 12 núcleos constituídos de um diretor, um dramaturgo e dois ou três - às vezes quatro - atores cada. Todos os núcleos iriam apresentar de forma expositora a quantidade de capítulos, cronologicamente, que Ihes couberam, com as seguintes responsabilidades: dramaturgo traria o enredo; o diretor os temas e idéias centrais do capítulo; e os atores encarregados de revelar as personagens principais. Ao término da exposição seguiam-se discussões - muitas! - e pequenas improvisações sobre aquilo que nos parecia mais importante.

Dessa forma foi ocupado o teatro Conchita de Moraes durante as primeiras tardes de quartas do ano findo, À noite, numa dupla jornada, os dramaturgos se reuniam para mais uma seara de discussões, onde o Abreu insistia para que vasculhássemos o imaginário e universo russos do século 19, com autores como Púchkin, Gógol, Korolenko, Tólstoi e outras obras do próprio Dostoievski, além da pesquisa de narrativa teatral, com subsídios de textos de Walter Benjamin.

Ao lado do entusiasmo e neurastenia pelo "generoso" material dostoiévskiano e suas possíveis tradu­ções ou transcriações cênicas, as facili­dades e dificuldades - sobretudo as van­tagens - do processo colaborativo tam­bém ganharam momentos de exame, avivados em praticamente todo o decorrer do curso. As experiências imedi­atamente anteriores a "Crime e Castigo" foram sui generis: o núcleo de direção havia montado "Beijo no Asfalto", de Nelson Rodrigues, com a concepção das cenas distribuída entre os componentes. Já o núcleo de dramaturgia, em outro processo colaborativo de trabalho, aca­bara de escrever a muitas mãos "Odis­séia", uma recriação contemporânea e particular da obra de Homero, interpre­tada pelos alunos do curso de forma­ção de atores 3 e dirigida pelos mes­tres-artistas Francisco Medeiros, Lucienne Guedes e Gustavo Kurlat. Ou seja, foi com o pilar russo que cada di­retor teve a seu lado um dramaturgo único (e vivo!), cada dramaturgo desen­volveu texto próprio junto a um diretor r atores, e cada ator trabalhou com dra­maturgo e diretor específicos para a sua cena.

Os doze trabalhos de Dostoievski

Antes que nos lançássemos à segunda fase da jornada polifônica (alcunha que os teóricos forjaram para designar seu tipo de construção literária),eminentemente trabalho de palco, a dramaturgia pensou e elegeu os 12 momentos que lhe pareciam mais fun­damentais dentro do romance, além de elencar as personagens mais significati­vas. O critério: aquilo que mais nos to­cava. Com uma eleição democrática realizada pelo Abreu através de voto aber­to, sem segundo turno, extraiu-se 12 pontos-chave de toda história que fo­ram para o quadro-negro como suges­tão aos atores e diretores. Com um ajus­te aqui e acolá a proposta foi ratificada e passamos a um breve momento deli­cado de formação definitiva dos grupos que iriam levar o desenvolvimento artís­tico de seu tema até o final - os partici­pantes juntaram-se pela escolha pesso­al de um dos 12 momentos. Todos satisfeitos - alguns conformados -, inici­am-se as improvisações.

Paralelo ao trabalho prático, como não poderia deixar de ser, na agenda Crime e Castigo havia espaço dedicado a palestras e qualquer outro evento artístico que soprasse ventos siberianos em nossas nucas. A exposi­ção "500 Anos de Arte-Russa", no Par­que Ibirapuera, foi visitada em comboio. Paulo Bezerra, responsável pela primeira tradução de "Crime e Castigo" do origi­nal russo para o português - edição, aliás, adotada em nosso lavor - veio es­pecialmente à ELT para falar sobre Dostoiévski e.. .Crime e Castigo. O pro­fessor de pós-graduação em ciências da religião da PUC de São Paulo, Luís Felipe Pondé, igualmente convidado a dividir suas reflexões porta adentro do Conchita, jogou novas luzes ao debate e nos encantou com seus estudos sobre a concepção de Dostoiévski de homem, através da qual produz uma sacralização da psicologia. Pondé, a propósito, lan­çou recentemente um livro em que tra­ça sua análise em cima de cinco obras de Dostoiévski, intitulado "Crítica Religi­osa a um Humanismo Ridículo", pela editora 34 (a mesma do tradutor). Tam­bém foi de extrema importância a leitu­ra de um livro-referência traduzido pelo mesmo Paulo Bezerra: "Problemas da Poética de Dostoiévski", do lingüista e também russo Mikhail Bakhtin. O pró­prio título denuncia sua relevância.
De volta às improvisações, cada grupo - ou pequeno núcleo - arriscava seu estudo cênico de forma distinta. Uns trabalhando diretamente com o cerne da cena, outros explorando momentos adjacentes. Alguns já com textosincipientes, outros investigando possibi­lidades formais. Todos tateando a plataforma com a qual a cena se desenro­laria. Ao término das improvisações do dia, e este procedimento foi praxe até a última semana, Tó (Antônio Araújo), Abreu e Lucienne teciam comentários e análises gerais e particulares dos resul­tados, gerando reações entusiasmadas ou macambúzias por parte dos alunos.

Noites brancas

Além dos períodos de encontro regular com todos os integrantes do projeto, tanto Lucienne quanto Tó e Abreu descolaram tempo reservado para discussão apenas com seus res­pectivos aprendizes. Assim os coorde­nadores puderam assessorar e malhar questões específicas à interpretação, di­reção e dramaturgia das cenas. Lucienne reunia-se com os atores no início das tardes de quarta. Tó por vezes segura­va os diretores após término dos en­contros. Já às noites de quarta, os dramaturgos estabeleceram uma dinâmica de trabalho que começou da seguinte maneira: o responsável por cada momento-chave expunha sua proposta da configuração dramática que imaginava e isso era amplamente discutido e enri­quecido pelos demais, até que, ao lon­go das semanas, todos fossem sabati­nados. Depois, com as improvisações definindo-se em cenas mais ou menos estruturadas, os primeiros textos foram chegando, e, a partir de então até o final, era leitura e reflexão sobre o papel, novamente com todos sugerindo possibilidades e apontando as lacunas.

Em determinado momento, se me recordo, no segundo semestre, reduzimos os tentáculos da investigação pelos improvisos e afunilamos os esforços no dimensionamento da cena que pretendíamos "fixa", apenas reelaborando, retrabalhando há toda semana. É claro que em maior ou menor grau elas se modificavam constantemente. Uma das principais deficuldades nesse período, a meu ver, era configurar a cena independente do romance. A linguagem própria do teatro exigia sín­teses e escolhas, abrir mão de trechos que adorávamos e pareciam fundamentais. Não eram. Os coordenadores ori­entaram para que as cenas tivessem unidade em si, estrutura própria, sem a dependência da cena ao lado - além da visão pessoal de cada um. Aos poucos ganharam expressão e salto qualitativo.

Por esses tempos o pessoal do núcleo de iluminação da ELT veio juntar-­se a nós. Em outra hora, por coincidên­cia, ou nem tanto, os textos dos drama­turgos foram apresentados mais ou menos simultaneamente, com leituras dramáticas para o coletivo.

Crime e Castigo - Núcleo de processo Colaborativo.
Foto: Beto Garavello
Peça polifônica

Das 12 restaram 10. Houve en­tre os percalços fusões de capítulos es­colhidos e abandonos de alguns inte­grantes. Certas cenas ficaram sem dra­maturgo. O próprio grupo desfalcado articulava a dramaturgia com o núcleo do Abreu, caso não houvesse disponibi­lidade de um dramaturgo desdobrar­se para arcar com duas. Atores foram substituídos e muitos atuaram em ou­tras cenas além da sua. Ao que me pa­rece, no entanto, as 10 cenas engolfaram e encaminharam os objetivos, com personagens definidas e ações de alta carga dramática, além da mão artística dos participantes socavando e massageando a matéria prima romanesca do século retrazado ao seu critério de prazer, crueldade e respeito.

Que se diga, por todo processo e seus resultados, naturalmente ficou às claras a importância de atuação nas di­ferentes "funções" (direção, dramaturgia, interpretação) num trabalho colaborativo, onde se promova sim a imisção generosa de cada um entre áre­as - base deste tipo de processo -, mas se vele pela participação de fato e responsável nos três âmbitos, com o risco de déficit para a cena, caso tanto não ocorra, evidenciado no palco entre nós nos momentos em que o tripé esteve aleijado.

A junção de todas as cenas num espetáculo uno foi deixada para provavelmente uma terceira fase. É preciso que fique claro que ainda se trata de um trabalho em realização. Esta problemá­tica se mostra como nova e desafiadora enxaqueca. Será possível construir uma unidade? Como juntar tudo? Haverá no­vas cenas? Que dramaturgia vai ser ne­cessária? Quais serão as medidas de in­terpretação? Como contracenariam os estilos de direção? Não sabemos, espe­ro que por enquanto...

E a frase de Sônia, principal heroína de "Crime e Castigo" convocando a si própria a tomar partido dos tor­mentos e possível remissão de Raskólnikov, ecoa de forma metafórica a todos os envolvidos neste projeto desde sua concepção até quando dermo-lo por encerrado:
“ ...É quer vamos sofrer juntos, e juntos vamos carregar a cruz!...”




_________________________________________________


Alessandro Toller é dramaturgo, responsavel pela dramaturgia de A Paixão do Circo, do Núcleo de Artes Circenses da ELT, que cumpriu recentemente temporada na praça do Teatro Conchita de Moraes. Atualmente o espetáculo está sediado no parque Celso Daniel, no centro da Cidade de Santo André.


3 comentários:

Anônimo disse...

acho importante ler sobre a construção de um trabalho, sobre os passos dados num processo. pra mim, coloca tudo em perspectiva. sinto que dou meus passos e aceito um pouco menos desesperadamente as indefinições como sendo parte do caminho.

Erick Monstavicius disse...

Me lembro que eu havia acabado de ler "Crime e Castigo", de nosso amigo russo, quando assisti esta montagem.

Fiquei muito impressionado pela qualidade. Depois de sair do teatro, por dias o sentimento me perseguiu. E foi um sentimento muito proximo da leitura do livro.

Parabéns àqueles que trabalharam nesta peça.

Bjs,

Erick!

marcio castro disse...

Até hoje eu acredito que, de todos os espetáculos que já vi, a cenografia estava mais consonante com a dramaturgia, direção e outros elementos. só o fato daquele paredão frente ao palco, com espaços comprimidos, me trazia uma sensação que ampliava aquele estado de dúvida do protagonista. parabéns a todos, mas neste caso, especialmente ao núcleo de cenografia.