Histórico

BREVE HISTÓRICO SOBRE A ESCOLA LIVRE DE TEATRO

O nome Escola Livre de Teatro já estava escolhido antes mesmo que o projeto estivesse estruturado no papel. Constava do programa político do então candidato a prefeito Celso Daniel e provinha de uma idéia do diretor de cultura, Celso Frateschi, segundo a qual a meta deveria ser “o embasamento, algo que permitisse passar para a comunidade os instrumentos necessários para se fazer teatro”. Neste sentido, a palavra “livre” parecia o elo essencial que uniria dois conceitos tão complexos e muitas vezes de difícil conjunção: o de escola (a práxis do ensino) e teatro (uma práxis da arte).

A opção por uma escola de teatro atendia a uma reivindicação dos núcleos de artistas da região. Ao mesmo tempo ia ao encontro da forte tradição que a cidade possui na área desde fins da década de sessenta. Em Santo André surgiram grandes nomes do teatro nacional, entre eles atores, diretores, dramaturgos e um grupo, de solidez e renome, que marcou época na década de setenta, o GTC (Grupo de Teatro da Cidade).

A idéia de uma escola ganhava concretude na medida em que isso representava não um produto artístico acabado, mas o potencial para a realização de uma produção cultural independente. Um ponto de acordo com a velha sentença: “não dê o peixe, ensine a pescar.”

Na primeira semana de maio de 1990 os jornais da cidade anunciavam: “Santo André cria escola de teatro.” A notícia havia sido dada durante a apresentação da peça Quase primeiro de abril, em cujo processo de criação se reuniram mais de duzentas pessoas discutindo teatro por três meses.

A sorte estava lançada. Para estruturar e dirigir o empreendimento foi convidada a pesquisadora e diretora de teatro Maria Thais Lima Santos, que em pouco tempo, e intensa atividade, formulou a proposta da Escola Livre de Teatro.





O QUE É A ESCOLA LIVRE DE TEATRO? BREVES RELATOS, AOS SALTOS

Escolas Mortas bóiam na doutrina
Peter Brook

A Escola Livre de Teatro foi criada em 1990 pela prefeitura de Santo André e é uma escola pública gerenciada pela Secretaria da Cultura, Esporte e Lazer do município.

O objetivo fundamental era muito simples: construir “o embasamento, algo que permitisse passar para a comunidade os instrumentos necessários para se fazer teatro”. Neste sentido, a palavra “livre” parecia o elo essencial que uniria dois conceitos tão complexos e muitas vezes de difícil conjunção: o de escola (a práxis do ensino) e teatro (uma práxis da arte).

A opção por uma escola de teatro atendia a uma reivindicação dos núcleos de artistas da região. Ao mesmo tempo ia ao de encontro da forte tradição que a cidade possui na área desde fins da década de sessenta. Em Santo André surgiram grandes nomes do teatro nacional, muitos diretores passaram por aqui e um grupo de solidez e renome marcou época na década de setenta, o GTC.

No texto do “Projeto Piloto” havia apenas alguns dos princípios que deveriam nortear a futura escola. Nada de organogramas detalhados ou conteúdos programáticos de cursos. Na introdução podia-se ler: “Necessitamos criar novas opções de centros facilitadores, onde as pessoas interessadas na pesquisa de linguagem teatral disponham de um espaço onde o ofício possa ser estudado e aprofundado”.

Basicamente, são duas as espécies de escolas teatrais encontráveis no Brasil: ou adotam o modelo acadêmico clássico, que equilibra formação teórica e prática segundo uma perspectiva mais histórica do que estética e mais passiva que ativa, onde os professores muito frequentemente não mais exercem atividades artísticas, ou têm como objetivo apenas fornecer certificados profissionais e fabricar atores descartáveis, conquistados com a ilusão do trabalho na televisão.

O intuito básico da proposta da Escola Livre era desde o princípio - e mantém-se assim até hoje -, conseguir a mobilidade de uma oficina cultural sem perder de vista a perspectiva formacional do aluno. Cuidar de seu crescimento artístico e instrumentalizá-lo em termos de conhecimento teatral sem amarrá-lo a obrigações curriculares pré-fixadas.

A palavra “livre” do nome foi sempre invocada e reafirmada. A escola é em primeiro lugar um espaço de formação do indivíduo. A dimensão humana caminha passo a passo a dimensão profissional. Para isso tornar-se realidade, foi preciso desvincular-se das exigências curriculares do Ministério da Educação e desobrigar-se de conferir diplomas profissionais. Desde o início a ELT afastava-se cada vez mais dos padrões normais de ensino teatral e se lançava na busca da experimentação.


Quase 20 anos...

Foi assim que nestes quase 20 anos, ainda que a Escola tenha crescido muito estruturalmente e acrescentado novas variantes ao seu plano pedagógico – o que era de se esperar de um centro artístico em movimento - a ELT consolidou-se como projeto de referência nacional na área da formação artística. Isso por força dos mestres, aprendizes e funcionários que construíram a paisagem humana do espaço que abraça o Teatro Conchita de Moraes e a história de um centro gerador de grandes encontros e de idéias para o teatro.

Foi na ELT, por exemplo, que consolidou-se, entre outras, a parceria entre o dramaturgo Luis Alberto de Abreu e o encenador Antônio Araújo, da qual surgiu um dos espetáculos mais importantes dos anos 90: O Livro de Jó. Foi lá que pela primeira vez teorizou-se sobre uma prática hoje amplamente difundida no teatro paulista, o “processo colaborativo”, que já vinha sendo exercitado com as turmas de aprendizes na Escola e que teve registro – já reconhecido publicamente pela imprensa como precursor do debate - publicado nos “Cadernos da ELT”.

Foi na ELT que uma geração de então jovens artistas, hoje lideranças no meio teatral, e outros mestres mais experimentados puderam e podem “aprender a ensinar” a arte do teatro, ao mesmo tempo em que amadurecem a sua própria arte. Não à toa, a ELT tornou-se referência para outros projetos importantes de formação teatral, Brasil afora, como o Galpão Cine-Horto, do grupo Galpão, de Minas (http://www.galpaocinehorto.com.br/) e a Escola Livre de teatro de Florianópolis (http://www.escolalivredeflorianopolis.blogspot.com/).



Alguns princípios da prática pedagógica

Não era, portanto, a ciência do mestre que os alunos aprendiam. Ele havia sido mestre por força da ordem que mergulhara os alunos em um círculo de onde eles podiam sair sozinhos...
(Jacques Ranciére, O mestre ignorante)



Do Mestre

O aprendizado da arte só pode se dar na própria arte. Por isso os professores da ELT (aqui chamados “mestres”, por lembrar o antigo aprendizado de ofício) são todos artistas e/ou pesquisadores do teatro com algum tipo de inquietação e lugar no panorama teatral. O fundamental, antes da formação como professor, é que este artista tenha a vocação e o desejo de compartilhar a sua prática e a sua pesquisa estética. Existem excelentes pedagogos com interesse no teatro, mas não existem mestres sem o conhecimento do seu ofício. É preferível um mestre que venha a se formar como pedagogo na prática viva a um pedagogo sem os instrumentos da expressão teatral.


Do Aprendiz

O aprendiz da Escola Livre é selecionado em processo público, já que a Escola não comporta toda a demanda a ela dirigida - e a ele são oferecidas muitas possibilidades formativas e muitas exigências também.

A Escola oferece um campo amplo de estudos, que vão da formação do ator (de curso mais longo) ao teatro de rua, passando por outros núcleos práticos e teórico-práticos (Circo, Máscara, Direção, História do teatro, Teatro-laboratório, Pedagogia, Interpretação).

O aprendiz tem a seu favor o princípio de Autonomia, Paulo-freireano, que vem sendo experimentado e amadurecido. Por um lado há o propósito de estimular o exercício consciente da estética nas bases de uma criação e de um relacionamento éticos. Por outro esse pressuposto não dispensa o fato de que a Autonomia não é delegada, é uma conquista que se alcança com empenho próprio e compromisso em relação às tarefas coletivas.

Como a Escola não tem um modelo tradicional de avaliação (por testes e instrumentos de aferição quantitativa do conhecimento), o fundamental é que o aprendiz esteja efetivamente comprometido aos processos. O excesso de faltas, portanto, é fator fundamental para o desligamento. Mais que a expressão do talento – sempre bem vindo, mas não regente dos processos – é a aderência verdadeira ao dia a dia da Escola o que conta.


Da relação mestre - aprendiz e do processo de formação

O processo formativo, nos tem ensinado a prática, deve se dar em uma relação menos vertical que a do ensino formal. Ou seja: resguardado e respeitado o repertório e a função mediadora que o mestre traz consigo (sua visão sobre o mundo e sobre o fazer teatral, sua bagagem artística acumulada pela Experiência e sua responsabilidade em conduzir a formação), o aprendizado deve partir do pressuposto que a certo ponto do processo mestre e aprendizes igualam-se na posição de pesquisadores, de prospectores da arte, na construção de um algo novo, uma Experiência nova, que não está dada. Essa operação não é fácil nem pacífica, mas é uma tentativa de deixar em aberto para ambos, mestres e aprendizes, a difícil e prazerosa tarefa da criação verdadeira.


Dos princípios de autonomia, liberdade e autoridade (em depoimentos)

“O grande problema que se coloca ao educador ou à educadora de opção democrática é como trabalhar no sentido de fazer possível que a necessidade do limite seja assumida eticamente pela liberdade. Quanto mais criticamente a liberdade assuma o limite necessário tanto mais autoridade tem ela, eticamente falando, para continuar lutando em seu nome. (...) Ninguém é autônomo primeiro para depois decidir. A autonomia vai se constituindo na experiência de várias, inúmeras decisões, que vão sendo tomadas.(...) . É neste sentido que uma pedagogia da autonomia tem de estar centrada em experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade, vale dizer, em experiências respeitosas da liberdade”. 2

“É preciso construir o conceito de autonomia. Poder “dizer em seu próprio nome” faz com que o sujeito precise elaborar-se, conhecer-se, ter repertório pra dizer em seu próprio nome. Muitas vezes a gente escuta um discurso retórico sobre autonomia, e que na verdade não se sustenta diante de duas ou três discussões (...) Eu lido muito com esta idéia, de que a autonomia também pode ser uma falácia quando ela também é nosso desejo. Falácia é uma fala sem raiz, é uma fala mentirosa, uma fala por si mesma, uma fala vazia. Falar em nome da autonomia, embora seja o nosso desejo, se a gente não constitui um alicerce pra ela, concreto, ela pode ser uma palavra ao vento”.3

“A gente só pode criar a partir de limites muito concretos. Às vezes parece contraditório dizer que você precisa de limites para poder criar, só que é o limite que te leva à liberdade. Porque a partir de um limite é que você tem um desenho para poder ultrapassar, para poder se superar, de uma certa forma.”4

“Eu achava que estimulando e falando do assunto seria suficiente e não foi. O que aconteceu de fato? A gente começou a estudar como são as composições. A gente começou a estudar métrica, a gente começou a estudar poema (...) o pessoal trouxe um monte de coisa (...) Nós simplesmente começamos a nos relacionar com esta matéria da qual a gente pretendia fazer alguma coisa - compor, enfim -, e desta relação, com este estudo, é que começaram a aparecer as composições. Aí eles ficaram sozinhos, aí eles começaram a trazer alguma coisa. Então isto não se produziu por decreto, do tipo: “se virem, façam sozinhos”5

‘Eu entro nesta questão da autonomia através dos estudos que a gente tem feito com o corpo, que nós temos usado diversas vezes como metáfora da cena. Por exemplo, a cabeça e a bacia. Cada uma tem funções muito diferentes e tem espaços que as separam, e há uma força tanto de atração quanto de repulsão. Se a cabeça fica independente da bacia, se ela rompe em nome da autonomia, ela perde as características de oposição. A função dela é dada em relação a oposição que ela faz à bacia. Então tem uma coisa aqui que é celebrar qual é a identidade e a diferença destas duas funções, perceber que todos têm que estar organizados dentro de um jogo, senão eles não são mais um corpo e não conseguem evoluir no aprendizado. 6


Disponibilidade para o diálogo

“... Nas minhas relações com os outros, que não fizeram necessariamente as mesmas opções que fiz, no nível da política, da ética, da estética, da pedagogia: nem posso partir do fato de que devo conquistá-los, nem tampouco temo que pretendam conquistar-me. É no respeito às diferenças entre mim e eles ou elas, na coerência entre o que faço e o que digo que me encontro com eles ou com elas”7

“Cabe ao ator ter CONSCIÊNCIA, FÉ no que está fazendo. Cabe ao ator ter a simplicidade, honestidade e verdade naquilo que fala. Cabe ao ator se divertir profundamente e seriamente durante sua atuação. Cabe ao ator escutar verdadeiramente seu colega de cena para poder reagir e falar o que tem que falar. A arte de escutar no palco é uma das tarefas mais difíceis para um ator. Aliás, na vida também não é fácil”.8


Do Programa

A Escola Livre de Teatro tem, para o curso de Formação à arte do Ator, uma grade de disciplinas próxima às usuais (Interpretação, Corpo, Voz, Música, Teoria). Entretanto, os conteúdos são “móveis” no sentido de que são mobilizados de acordo com o repertório dos mestres e do perfil específico de cada turma. Neste momento, por exemplo, temos em abordagem desde o realismo ao teatro épico brechtiano; dos jogos de improvisação ao estudo da Máscara; da estética teatral aos fundamentos da dramaturgia, etc. Igualmente, nos “Núcleos” que têm temas de trabalho específico os conteúdos estão colados à experiência artística do Mestre. Por exemplo, o curso de direção teatral acontece pautado pela pesquisa do seu coordenador, Luis Fernando Marques.

“Eu nunca entendi o sentido de se aprender logaritmos, mesmo o mundo me dizendo que um currículo escolar básico inclui a noção de logaritmos, e que se eu quisesse me dar por escolarizado eu deveria aprender logaritmos. O fato é que eu nunca aprendi. Meu fracasso logarítmico foi mais um dos muitos exercícios de submissão conformada a que a escola me impôs. Caminhava pelos corredores da instituição sem perceber que o “currículo normal” me obrigava a traçar um percurso de portas que, talvez, não fossem as escolhidas por mim se aquele espaço se interessasse pelo meu desejo.

A mesma sensação bovina tive na universidade, a sensação de aprendizado frio, formatado pela hipnose do senso comum. Mas enquanto nas salas-matadouro acontecia a reprodução da força de trabalho alienada, em outro lugar e ao mesmo tempo, um tipo de construção de conhecimento feito de forma coletiva, a partir dos impulsos e das curiosidades de indivíduos que tentavam produzir juntos, harmonizando suas originalidades, gerava a beleza potente e transformadora do conhecimento vivo. Este outro lugar era um grupo de teatro amador. “Uma sala de aula de teatro deve ter, em minha opinião, a atmosfera do grupo de teatro amador a que me referi”.






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