Dando continuidade à publicação dos textos do Cadernos da ELT nº 0, postamos agora um texto de Alessandro Toller, dramaturgo do trabalho que vem sendo recentemente apresentado pelo núcleo de artes Circenses da ELT , a Paixão do Circo. Na época, Alessandro era aprendiz do núcleo de dramaturgia e participante do projeto do Núcleo de Processo Colaborativo, que deu origem ao ano seguinte o espetáculo Crime e Castigo, que, além de temporada na ELT, também teve este trabalho apresentado No Centro Cultural São Paulo.
Boa leitura a todos, convido a comentarem aqui as impressões sobre.
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Memórias do Subsolo do Conchita
Alessandro Toller*
Alessandro Toller*
Alessandro Toller (à esquerda) em cena de Crime e Castigo.
Núcleo de Processo Colaborativo
Foto: Beto Garavello
“Eu precisava saber de outra coisa, outra coisa me impelia: naquela ocasião eu precisava saber, e saber o quanto antes: eu sou um piolho como todos, ou sou um homem? Eu posso ultrapassar o limite ou não! Eu ouso inclinar-me e tomar o poder ou não! Sou uma Bestya trêmula ou tenho o direito de matar...”
A dúvida hedionda que acomete Raskólnikov, personagem central de CRIME E CASTIGO, talvez tenha sido a fagulha incendiária que levou os coordenadores dos núcleos de direção e dramaturgia da ELT a propor o trabalho realizado ao longo do ano passado. Aliada, creio eu, ao desafio de lidar teatralmente com um clássico da literatura de quase 600 páginas.
Escrito em 1866 pelo russo Fiodor M. Dostoiévski (1821-1881), o romance foi posto à mesa para um grupo de 12 diretores, coordenados por Antônio Araújo, 12 dramaturgos, por Luis Alberto de Abreu e algumas dezenas de atores sob a orientação de Lucienne Guedes, convidada a participar do projeto de forma a assegurar a assegurar na mesma medida o trinônio fundamental para o desenvolvimento de um trabalho colaborativo.
Do Prefácio ao Epílogo
Logo ao primeiro encontro definiu-se a etapa inicial de nossa obra-de-fôlego: faríamos em conjunto a varredura analítica do catatau, capítulo por capítulo. As partes se uniram - através de sorteio - e criaram-se 12 núcleos constituídos de um diretor, um dramaturgo e dois ou três - às vezes quatro - atores cada. Todos os núcleos iriam apresentar de forma expositora a quantidade de capítulos, cronologicamente, que Ihes couberam, com as seguintes responsabilidades: dramaturgo traria o enredo; o diretor os temas e idéias centrais do capítulo; e os atores encarregados de revelar as personagens principais. Ao término da exposição seguiam-se discussões - muitas! - e pequenas improvisações sobre aquilo que nos parecia mais importante.
Dessa forma foi ocupado o teatro Conchita de Moraes durante as primeiras tardes de quartas do ano findo, À noite, numa dupla jornada, os dramaturgos se reuniam para mais uma seara de discussões, onde o Abreu insistia para que vasculhássemos o imaginário e universo russos do século 19, com autores como Púchkin, Gógol, Korolenko, Tólstoi e outras obras do próprio Dostoievski, além da pesquisa de narrativa teatral, com subsídios de textos de Walter Benjamin.
Ao lado do entusiasmo e neurastenia pelo "generoso" material dostoiévskiano e suas possíveis traduções ou transcriações cênicas, as facilidades e dificuldades - sobretudo as vantagens - do processo colaborativo também ganharam momentos de exame, avivados em praticamente todo o decorrer do curso. As experiências imediatamente anteriores a "Crime e Castigo" foram sui generis: o núcleo de direção havia montado "Beijo no Asfalto", de Nelson Rodrigues, com a concepção das cenas distribuída entre os componentes. Já o núcleo de dramaturgia, em outro processo colaborativo de trabalho, acabara de escrever a muitas mãos "Odisséia", uma recriação contemporânea e particular da obra de Homero, interpretada pelos alunos do curso de formação de atores 3 e dirigida pelos mestres-artistas Francisco Medeiros, Lucienne Guedes e Gustavo Kurlat. Ou seja, foi com o pilar russo que cada diretor teve a seu lado um dramaturgo único (e vivo!), cada dramaturgo desenvolveu texto próprio junto a um diretor r atores, e cada ator trabalhou com dramaturgo e diretor específicos para a sua cena.
Os doze trabalhos de Dostoievski
Antes que nos lançássemos à segunda fase da jornada polifônica (alcunha que os teóricos forjaram para designar seu tipo de construção literária),eminentemente trabalho de palco, a dramaturgia pensou e elegeu os 12 momentos que lhe pareciam mais fundamentais dentro do romance, além de elencar as personagens mais significativas. O critério: aquilo que mais nos tocava. Com uma eleição democrática realizada pelo Abreu através de voto aberto, sem segundo turno, extraiu-se 12 pontos-chave de toda história que foram para o quadro-negro como sugestão aos atores e diretores. Com um ajuste aqui e acolá a proposta foi ratificada e passamos a um breve momento delicado de formação definitiva dos grupos que iriam levar o desenvolvimento artístico de seu tema até o final - os participantes juntaram-se pela escolha pessoal de um dos 12 momentos. Todos satisfeitos - alguns conformados -, iniciam-se as improvisações.
Paralelo ao trabalho prático, como não poderia deixar de ser, na agenda Crime e Castigo havia espaço dedicado a palestras e qualquer outro evento artístico que soprasse ventos siberianos em nossas nucas. A exposição "500 Anos de Arte-Russa", no Parque Ibirapuera, foi visitada em comboio. Paulo Bezerra, responsável pela primeira tradução de "Crime e Castigo" do original russo para o português - edição, aliás, adotada em nosso lavor - veio especialmente à ELT para falar sobre Dostoiévski e.. .Crime e Castigo. O professor de pós-graduação em ciências da religião da PUC de São Paulo, Luís Felipe Pondé, igualmente convidado a dividir suas reflexões porta adentro do Conchita, jogou novas luzes ao debate e nos encantou com seus estudos sobre a concepção de Dostoiévski de homem, através da qual produz uma sacralização da psicologia. Pondé, a propósito, lançou recentemente um livro em que traça sua análise em cima de cinco obras de Dostoiévski, intitulado "Crítica Religiosa a um Humanismo Ridículo", pela editora 34 (a mesma do tradutor). Também foi de extrema importância a leitura de um livro-referência traduzido pelo mesmo Paulo Bezerra: "Problemas da Poética de Dostoiévski", do lingüista e também russo Mikhail Bakhtin. O próprio título denuncia sua relevância.
De volta às improvisações, cada grupo - ou pequeno núcleo - arriscava seu estudo cênico de forma distinta. Uns trabalhando diretamente com o cerne da cena, outros explorando momentos adjacentes. Alguns já com textosincipientes, outros investigando possibilidades formais. Todos tateando a plataforma com a qual a cena se desenrolaria. Ao término das improvisações do dia, e este procedimento foi praxe até a última semana, Tó (Antônio Araújo), Abreu e Lucienne teciam comentários e análises gerais e particulares dos resultados, gerando reações entusiasmadas ou macambúzias por parte dos alunos.
Noites brancas
Além dos períodos de encontro regular com todos os integrantes do projeto, tanto Lucienne quanto Tó e Abreu descolaram tempo reservado para discussão apenas com seus respectivos aprendizes. Assim os coordenadores puderam assessorar e malhar questões específicas à interpretação, direção e dramaturgia das cenas. Lucienne reunia-se com os atores no início das tardes de quarta. Tó por vezes segurava os diretores após término dos encontros. Já às noites de quarta, os dramaturgos estabeleceram uma dinâmica de trabalho que começou da seguinte maneira: o responsável por cada momento-chave expunha sua proposta da configuração dramática que imaginava e isso era amplamente discutido e enriquecido pelos demais, até que, ao longo das semanas, todos fossem sabatinados. Depois, com as improvisações definindo-se em cenas mais ou menos estruturadas, os primeiros textos foram chegando, e, a partir de então até o final, era leitura e reflexão sobre o papel, novamente com todos sugerindo possibilidades e apontando as lacunas.
Em determinado momento, se me recordo, no segundo semestre, reduzimos os tentáculos da investigação pelos improvisos e afunilamos os esforços no dimensionamento da cena que pretendíamos "fixa", apenas reelaborando, retrabalhando há toda semana. É claro que em maior ou menor grau elas se modificavam constantemente. Uma das principais deficuldades nesse período, a meu ver, era configurar a cena independente do romance. A linguagem própria do teatro exigia sínteses e escolhas, abrir mão de trechos que adorávamos e pareciam fundamentais. Não eram. Os coordenadores orientaram para que as cenas tivessem unidade em si, estrutura própria, sem a dependência da cena ao lado - além da visão pessoal de cada um. Aos poucos ganharam expressão e salto qualitativo.
Por esses tempos o pessoal do núcleo de iluminação da ELT veio juntar-se a nós. Em outra hora, por coincidência, ou nem tanto, os textos dos dramaturgos foram apresentados mais ou menos simultaneamente, com leituras dramáticas para o coletivo.
Crime e Castigo - Núcleo de processo Colaborativo.
Foto: Beto Garavello
Peça polifônica
Das 12 restaram 10. Houve entre os percalços fusões de capítulos escolhidos e abandonos de alguns integrantes. Certas cenas ficaram sem dramaturgo. O próprio grupo desfalcado articulava a dramaturgia com o núcleo do Abreu, caso não houvesse disponibilidade de um dramaturgo desdobrarse para arcar com duas. Atores foram substituídos e muitos atuaram em outras cenas além da sua. Ao que me parece, no entanto, as 10 cenas engolfaram e encaminharam os objetivos, com personagens definidas e ações de alta carga dramática, além da mão artística dos participantes socavando e massageando a matéria prima romanesca do século retrazado ao seu critério de prazer, crueldade e respeito.
Que se diga, por todo processo e seus resultados, naturalmente ficou às claras a importância de atuação nas diferentes "funções" (direção, dramaturgia, interpretação) num trabalho colaborativo, onde se promova sim a imisção generosa de cada um entre áreas - base deste tipo de processo -, mas se vele pela participação de fato e responsável nos três âmbitos, com o risco de déficit para a cena, caso tanto não ocorra, evidenciado no palco entre nós nos momentos em que o tripé esteve aleijado.
A junção de todas as cenas num espetáculo uno foi deixada para provavelmente uma terceira fase. É preciso que fique claro que ainda se trata de um trabalho em realização. Esta problemática se mostra como nova e desafiadora enxaqueca. Será possível construir uma unidade? Como juntar tudo? Haverá novas cenas? Que dramaturgia vai ser necessária? Quais serão as medidas de interpretação? Como contracenariam os estilos de direção? Não sabemos, espero que por enquanto...
E a frase de Sônia, principal heroína de "Crime e Castigo" convocando a si própria a tomar partido dos tormentos e possível remissão de Raskólnikov, ecoa de forma metafórica a todos os envolvidos neste projeto desde sua concepção até quando dermo-lo por encerrado:
“ ...É quer vamos sofrer juntos, e juntos vamos carregar a cruz!...”
Das 12 restaram 10. Houve entre os percalços fusões de capítulos escolhidos e abandonos de alguns integrantes. Certas cenas ficaram sem dramaturgo. O próprio grupo desfalcado articulava a dramaturgia com o núcleo do Abreu, caso não houvesse disponibilidade de um dramaturgo desdobrarse para arcar com duas. Atores foram substituídos e muitos atuaram em outras cenas além da sua. Ao que me parece, no entanto, as 10 cenas engolfaram e encaminharam os objetivos, com personagens definidas e ações de alta carga dramática, além da mão artística dos participantes socavando e massageando a matéria prima romanesca do século retrazado ao seu critério de prazer, crueldade e respeito.
Que se diga, por todo processo e seus resultados, naturalmente ficou às claras a importância de atuação nas diferentes "funções" (direção, dramaturgia, interpretação) num trabalho colaborativo, onde se promova sim a imisção generosa de cada um entre áreas - base deste tipo de processo -, mas se vele pela participação de fato e responsável nos três âmbitos, com o risco de déficit para a cena, caso tanto não ocorra, evidenciado no palco entre nós nos momentos em que o tripé esteve aleijado.
A junção de todas as cenas num espetáculo uno foi deixada para provavelmente uma terceira fase. É preciso que fique claro que ainda se trata de um trabalho em realização. Esta problemática se mostra como nova e desafiadora enxaqueca. Será possível construir uma unidade? Como juntar tudo? Haverá novas cenas? Que dramaturgia vai ser necessária? Quais serão as medidas de interpretação? Como contracenariam os estilos de direção? Não sabemos, espero que por enquanto...
E a frase de Sônia, principal heroína de "Crime e Castigo" convocando a si própria a tomar partido dos tormentos e possível remissão de Raskólnikov, ecoa de forma metafórica a todos os envolvidos neste projeto desde sua concepção até quando dermo-lo por encerrado:
“ ...É quer vamos sofrer juntos, e juntos vamos carregar a cruz!...”
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Alessandro Toller é dramaturgo, responsavel pela dramaturgia de A Paixão do Circo, do Núcleo de Artes Circenses da ELT, que cumpriu recentemente temporada na praça do Teatro Conchita de Moraes. Atualmente o espetáculo está sediado no parque Celso Daniel, no centro da Cidade de Santo André.
3 comentários:
acho importante ler sobre a construção de um trabalho, sobre os passos dados num processo. pra mim, coloca tudo em perspectiva. sinto que dou meus passos e aceito um pouco menos desesperadamente as indefinições como sendo parte do caminho.
Me lembro que eu havia acabado de ler "Crime e Castigo", de nosso amigo russo, quando assisti esta montagem.
Fiquei muito impressionado pela qualidade. Depois de sair do teatro, por dias o sentimento me perseguiu. E foi um sentimento muito proximo da leitura do livro.
Parabéns àqueles que trabalharam nesta peça.
Bjs,
Erick!
Até hoje eu acredito que, de todos os espetáculos que já vi, a cenografia estava mais consonante com a dramaturgia, direção e outros elementos. só o fato daquele paredão frente ao palco, com espaços comprimidos, me trazia uma sensação que ampliava aquele estado de dúvida do protagonista. parabéns a todos, mas neste caso, especialmente ao núcleo de cenografia.
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