Postagem de um texto da Maria Ceccato, coordenadora do núcleo de pedagogia da ELT, que está servindo de base para as discussões nas reuniões dos mestres.
Transparência nos processos. Viva!
Boa leitura.
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PROPOSTAS PARA NOSSA DISCUSSÃO SOBRE PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO
A partir de nossa reunião no dia 13/09, pensei em como organizar nossas muitas questões. Separei-as em campos determinados (que proponho como possibilidade), para ajudar a construção de nosso pensamento conjunto e a possível criação de um Projeto Político Pedagógico para a ELT.
Mas, antes de tudo, acho interessante a gente especificar alguns princípios teórico/práticos para que saibamos do que falamos.
Assim gostaria de propor conceitos, presentes em dois pensadores que respeito muito, para nos orientar. Eles não são exatamente iguais nos dois autores, mas acho que nossa aproximação investigativa não prejudica nenhum dos dois, ao conjugá-los juntamente.
Estes conceitos são:
1. A questão de mundo e vida para Hanna Arendt
2. A concepção do homem como ser inacabado de Paulo Freire.
Então, eu peço um pouquinho de paciência para eu descrevê-los, avisando que usarei minhas palavras e que estou falando de coisas concretas e não de teorias flutuantes e metafísicas.
Hanna Arendt
Hanna Arendt é uma filósofa e teórica política alemã que emigrou para os Estados Unidos na época do nazismo. Nasceu em 1909 e morreu em 1975. Dedicou grande parte de sua obra para discutir as razões do totalitarismo. Não era pedagoga, nem teórica da educação (por isso que gostamos dela, rsrsrsrsrs), mas escreveu dois textos essenciais para o campo da pedagogia: “Reflexões sobre Little Rock”, em que discutiu como o governo americano tentou combater o racismo e a discriminação na Escola de Little Rock; e “A Crise na Educação”, um artigo que tentava esclarecer diversas polêmicas sobre o primeiro texto e que, longe de ser apaziguador, é um texto bastante provocativo. O mais importante, me parece, é que em ambos os artigos, ele aborda a educação não como um área desconectada de outras, mas como questão essencialmente política. “A Crise na Educação” está publicado no livro “Entre o Passado e o Futuro” que é muito bacana de ler.
Mas o que nos interessa é o seguinte:
A percepção de Arendt é que houve um rompimento das gerações do pós-guerra com a tradição. Neste sentido, as novas práticas da educação desconsideravam um legado necessário como conteúdo de integração das novas gerações às construções humanas, criando uma cisão entre as práticas da vida adulta e a infância, e acabando por se dês-responsabilizar tanto pelos novos seres que adentravam o mundo, quanto pelo próprio mundo em constante construção.
Para entender isto é preciso saber o que Hanna Arendt considera “mundo”.
Para ela há uma diferença entre natalidade e nascimento.
Quando um ser nasce, ele nasce para a vida. A vida são as condições que irão garantir ou impedir a sobrevivência deste ser. Portanto, a vida está relacionada às condições biológicas da sobrevivência do ser: se alimentar, dormir, se proteger. A família humana (seja ela como for) é responsável por acolher este novo ser nos mistérios da vida e tem a função de garantir a sobrevivência biológica dele, a partir do seu nascimento.
Contudo, o que faz dos seres, Homens/Mulheres, é o seu ingresso no mundo. Este ingresso não se dá pelo nascimento, mas pela natalidade. O mundo seria o complexo conjunto de tradições e realizações matérias e simbólicas humanas. Seu caráter é comum, pois compartilhado por todos os homens/mulheres que já viveram, aqueles que vivem e viverão. Diz Arendt em “A Condição Humana”: “o mundo comum é aquilo que adentramos ao nascer e deixamos para trás quando morremos. Transcende a duração de nossa vida tanto no passado quanto no futuro: preexistia à nossa chegada e sobreviverá a nossa breve permanência. É isso o que temos em comum não só com aqueles que vivem conosco, mas também com aqueles que aqui estiveram antes e aqueles que virão depois de nós”.
Para a autora o ingresso do ser vivente no mundo, sua natalidade, se dá pela Educação.
Dado isto, também precisamos entender que distinção Arendt faz entre campo público e campo privado. As questões da vida estão diretamente relacionadas ao campo privado; e as questões do mundo ao campo público. Todavia, hoje, estes campos estão amalgamados de tal maneira, que, para bem dizer, nenhum deles efetivamente existe. No momento em que questões da sobrevivência biológica, como (para dizer explicitamente) as questões financeiras que garantem a sobrevivência mínima dos seres, tomam lugar de destaque absoluto também no campo público, questões do campo público propriamente, como a constituição do comum através da palavra compartilhada, do discurso, da construção do pensamento e da troca de idéias, perde seu lugar. Mas também o campo privado perde espaço ao ser fetichizado ao máximo na reprodução do pseudo espaço público. Ou seja, a vida não tem mais lugar de acolhimento. Os mistérios da vida, que mantinham-se protegidos no espaço do privado, passam a ser mercadoria exposta a exaustão na sociedade contemporânea espetacularizada. Assim, se forma um terceiro campo que é o campo social, espaço ambíguo onde questões públicas perdem espaço para as questões da sobrevivência e questões privadas são lançadas à arena da mercadoria.
Na análise da filósofa, a escola, diante deste quadro, deixa de cuidar do ingresso do homem/mulher no mundo, para garantir sua sobrevivência no campo social.
Tá dando para acompanhar?
O que afinal nos interessa?
Para mim, interessa 2 questões centrais:
1. Que somos responsáveis pelo mundo e que devemos nos responsabilizar por ajudar os aprendizes a se apropriarem deste mundo.
2. Que o teatro é uma arte essencialmente do campo público, do político, da palavra compartilhada e do comum. Portanto nossa responsabilidade diante deste quadro é bastante grande, talvez quase utópica.
Mas vejam bem, a tradição que Hanna Arendt pretende nos oriente no mundo, para ser questionada e contraposta pelo novo, é concreta em suas construções matérias e simbólicas. Todo aquele que ingressa no mundo traz em si uma energia destruidora que vem com o novo. Esta energia deve vicejar a seu tempo e contrapor as formas que não estejam mais vivas, mover o processo histórico. Cabe ao adulto, àquele que antes chegou, tanto proteger o mundo como viabilizar que este novo ingresse na tradição para futuramente transformá-la. Abandonar o novo no campo disforme da não-tradição é inviabilizar sua ação revolucionaria e legar o ser a sua própria sorte na luta pela sobrevivência. Portanto, repito: somos responsáveis pelo mundo e pela tradição.
Todavia, como não reacionários que somos, possuímos a escuta necessária para não impedir a revolução. Na nossa ação de artistas, defendo nossa solidariedade à revolução, ou seja, devemos tomar a frente nas barricadas. Mas na nossa ação de educadores, temos uma dupla responsabilidade, com a revolução, mas também com a tradição.
Este aspecto dá corpo a uma outra crença de Arendt: a de que não é possível educar sem ensinar. Mas é possível ensinar sem educar. Deixo esta para vocês entenderem diante do exposto. Por que?
Paulo Freire
Bem, passemos para o nosso segundo educador. Talvez o “mais nós”, o “mais menos alemão, mais progressista, mais contemporâneo (1921-1997), periférico, nordestino e certamente, mais comunista, Paulo Freire.
Para Freire, o homem é um ser inacabado, que constrói coletivamente o mundo na busca de seu acabamento, sempre à frente, sempre inconcluso. O que difere o homem dos demais animais que também vão se concluindo na sobrevivência-vida, é a consciência deste inacabamento e a busca ética pela construção do mundo junto aos demais.
Vou colar um trecho de minha dissertação (O Teatro Vocacional e a Apropriação da Atitude Épica-Dialética) que, me parece, dá conta um pouco deste conceito:
Para compreender como Freire entende autonomia e emancipação, necessitamos arrolar alguns outros conceitos que o autor elabora ao longo de sua obra/vida e que estão maravilhosamente expressos no seu livro “Pedagogia da Autonomia, saberes necessários à prática educativa”. Para o pedagogo, ensinar exige a consciência do inacabamento dos seres, assim como o reconhecimento do fato de que somos, todos, seres condicionados. O inacabamento do ser humano é próprio da experiência vital. O que vive é inacabado, e será o esforço da busca pela sua completude que gerará as transformações necessárias que alimentam a vida. É, contudo, prerrogativa do ser humano, e não de outros seres vivos, a consciência deste inacabamento. Esta inconclusão do homem é reconhecida, por ele, através da sua capacidade de ação sobre o mundo. O homem é capaz de intervir no mundo, de comparar, de ajuizar, de decidir, de escolher, de romper, e isto o faz um ser ético, um ser capaz de agir sobre o mundo a favor ou contrariamente a esta ética. Freire diz que gosta de ser homem porque:
(...) não está dado como certo, como inequívoco, irrevogável que sou ou serei decente, que testemunharei sempre gestos puros, que sou e que serei justo, que respeitarei os outros, que não mentirei escondendo o seu valor porque a inveja de sua presença no mundo me incomoda e me enraivece. Gosto de ser homem porque sei que minha passagem pelo mundo não é predeterminada, preestabelecida. Que o meu “destino” não é um dado, mas algo que precisa ser feito e de cuja responsabilidade não posso me eximir. Gosto de ser gente porque a História em que me faço com os outros e de cuja feitura tomo parte é um tempo de possibilidade e não de determinismo.*
Deste modo, a idéia de inacabamento em Freire relaciona-se diretamente à nossa responsabilidade como seres históricos e políticos, que agem no mundo para transformá-lo. Nossa autonomia relaciona-se a este inacabamento porque a forma, as decisões, as atitudes que tomaremos em busca de nossa completude, através de nossa ação sobre o mundo, são individuais e únicas. Assim, somos seres autônomos e devemos ter esta condição respeitada. Contudo, devemos estar conscientes de que somos também seres condicionados, porque inseridos numa História que fazemos e numa História que nos faz. Então, a autonomia em Freire não é a autonomia idealizada que leva o indivíduo, inevitavelmente quando acessada, ao esclarecimento, ao entendimento dos caminhos que deve trilhar para tornar-se e manter-se livre. Esta idéia de uma razão como guia infalível para a liberdade deve ser compreendida em contraponto às idéias desenvolvidas por Freire através de seu pensamento crítico, pensamento materialista histórico. O homem, como ser ético e consciente de sua inconclusão, não é vítima de um destino com o qual ele não pode lutar, mas é um ser que, coletivamente, constrói uma História e é construído por ela. Então, ele é autônomo, mas pode não ter esta autonomia respeitada, pode ser alijado dela e manter-se não livre por condições impostas a ele sob o manto de “fatalidades do destino”. O caminho da liberdade neste contexto é o caminho da conscientização das condições que mantêm o homem alijado de sua autonomia. Para Freire, o percurso a ser trilhado não é o percurso da conquista da autonomia (natural ao homem), mas o caminho da emancipação através do conhecimento, como práxis coletiva. A emancipação, diferentemente da autonomia, não pode ser entendida como atributo individual, privado, mas apenas como atributo coletivo, social.
* FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia, saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996 (Coleção Leitura). p.52-53.
Campos de discussão:
Bom, minha sugestão é que partamos destes conceitos para pensar as seguintes questões em três campos distintos. Como vamos pensá-las, se simultaneamente ou não, é uma outra questão.
Campo 1- O mestre no mundo:
· Quais seus projetos, crenças e desejos?
Ex: Projeto artístico, visão de mundo através da criação artística, formas como se organiza para criar com seus pares, visão de política cultural, crenças e princípios éticos, projeções para o futuro na sua ação poética.
· Quais nossas semelhanças e diferenças?
Ex: Precisamos acreditar nas mesmas coisas? Se não, quais são os pontos inegociáveis e quais aqueles que nos unem?
· Como manter nosso vínculo ético e apaixonado por este mundo em constante construção?
Ex: O que, na minha prática como artista, mantém minha busca pela transformação e aponta para meu engajamento ético-político? Que mundo queremos e o que fazemos para construí-lo?
Campo 2 - O mestre como co-responsável pelo mundo junto ao aprendiz:
· Quais as condições do mundo que compartilhamos com o aprendiz?
Ex: Nós nos responsabilizamos pela tradição de nossa prática artística? Como introduzimos o aprendiz na realidade efetiva e concreta da criação teatral, ou seja, nas condições imperfeitas do trabalho totalmente compartilhado, da sobrevivência financeira, do individualismo e do mundo espetacularizado?
· O que visualizamos como ação deste aprendiz no mundo?
Ex: o que esperamos que o aprendiz faça e seja ao sair da Escola?
· Como nos responsabilizamos solidariamente com este aprendiz e com o mundo?
Ex: Como eu me mantenho artista e educador simultaneamente?
Campo 3 - Grandes questões cotidianas
· Quais regras podemos estabelecer para introduzir esta co-responsabilidade entre mestre e aprendiz no primeiro plano de nossa ação, ou seja, no corpo da Escola?
Ex: Como trabalhar pela liberdade e responsabilidade de todos no uso da Escola e de seus recursos?
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